Há injustiças que não deixam marcas no corpo, mas que se cravam na memória como cicatrizes permanentes. A minha ocorreu entre 2014 e 2015, pelas mãos de quem tinha o dever de proteger: a Polícia Nacional.
Na altura, trabalhava na farmácia Chocovala, no Benfica. Encontrava-me em serviço, a exercer a minha função como técnico de enfermagem. Naquele período, a questão das carteiras profissionais em várias áreas da saúde não era amplamente divulgada nem devidamente esclarecida. Eu possuía o número da Ordem dos Enfermeiros, documento que me habilitava a trabalhar em farmácias, postos médicos e outras unidades de saúde. Exercia a minha actividade com seriedade e responsabilidade, sem nunca imaginar que esse dia viria a alterar profundamente a minha percepção da autoridade e da justiça.
Fui abordado por um casal de agentes da então Polícia Económica, que me solicitaram que os acompanhasse para um simples esclarecimento na Esquadra do Kilamba. Asseguraram-me que se tratava de um procedimento de rotina, apenas para verificação de documentação, e que regressaria a casa de seguida. Confiei e entrei na viatura policial.
Mas não regressei a casa.
Cheguei à Esquadra do Kilamba por volta das 15 horas. Tudo me parecia estranho, confuso e intimidante. Era a primeira vez que entrava numa esquadra e a primeira vez que seguia numa viatura policial. Sem explicações claras, fui algemado. Levaram-me para uma sala, retiraram-me a t-shirt e tiraram-me fotografias, como se eu fosse um criminoso. De seguida, conduziram-me a uma cela.
Passei ali a noite.
Fui informado de que estava a ser acusado do crime de exercício ilegal da profissão. No dia seguinte, fui submetido a um julgamento sumário. Quando o juiz me concedeu a palavra, perguntou-me se os factos descritos no auto policial correspondiam à verdade. Respondi afirmativamente: eu encontrava-me no meu local de trabalho, apresentei a documentação de que dispunha, mas não possuía carteira profissional — não por negligência ou má-fé, mas por desconhecimento. Nunca me havia sido explicado que, naquele contexto, tal documento era obrigatório para técnicos de enfermagem ou de farmácia. Até então, apenas tinha ouvido falar, de forma recorrente, da carteira profissional dos artistas, frequentemente divulgada na grelha de programação da TPA.
Sentia-me profundamente triste. E, no íntimo, preparado para uma condenação.
Foi então que ouvi uma intervenção que nunca mais esqueci. Um advogado do Ministério Público defendeu que a polícia, em vez de retirar jovens dos seus locais de trabalho para os expor à humilhação de um tribunal, deveria adoptar uma postura pedagógica. Esclarecer os cidadãos, informar que o país estava em mudança, que as leis evoluíam, e conceder prazos razoáveis — seis meses, por exemplo — para a regularização da situação documental. A repressão não deveria substituir a educação cívica.
Fui absolvido, com reconhecimento do meu direito à resistência criminal.
Contudo, a absolvição não apaga tudo.
Os anos passaram, mas a mágoa permanece. Porque fui tratado como criminoso quando apenas trabalhava. Porque passei uma noite numa cela sem nunca ter cometido qualquer acto ilícito. Porque a dignidade que me foi retirada naquele dia nenhuma decisão judicial conseguiu devolver por completo.
Há manchas que não constam dos registos oficiais, mas que ficam gravadas na consciência.
E essa… nenhuma força policial conseguirá apagar da minha memória.
Chakuisa Muachinguenji
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